Há trinta e oito instituições representadas na Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “Na prática, o que fazemos é estabelecer uma ponte entre essas organizações, a sociedade civil e os decisores. Defendo que, hoje, não se conseguem governar as sociedades contemporâneas mantendo-nos reféns dos modelos tradicionais, num registo muito estrito do ponto de vista hierárquico, de cima para baixo.
Temos de funcionar, também, em sentido inverso, de baixo para cima.
Com as plataformas de cidadãos, as associações empresariais, as CCDR [Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional], as instituições do ensino superior, as de investigação e desenvolvimento tecnológico. E, nessa conjugação de competências, tentar trazer os respectivos saberes para influenciar as políticas”. São palavras do timoneiro. Do homem que vai ao leme. Professor, gestor, estratega, pensador, poeta. Português, nascido em Angola. Ou, simplesmente, homem do Mundo. Com passaporte perfumado de pitangas e carimbado por folhas de jacarandá. António Costa e Silva tem tanto para nos contar sobre o futuro.
Em termos de agenda, o que desinquieta mais no contra-relógio de aplicação do PRR, em termos do melhor aproveitamento possível desta oportunidade?
O nosso paradigma mental. Somos um povo muito individualista. Conversamos pouco uns com os outros, não construímos plataformas de colaboração efectiva e activa, funcionamos em silos. E isso é válido para a Administração Pública, para o sector empresarial, para o ensino superior. Realmente, somos fragmentados, pouco colaborativos. Para executar um plano destes, precisamos de um elo colectivo, de um propósito, de um desígnio que seja capaz de mobilizar o País. É urgente mudar este paradigma mental, reconhecendo eu que se trata de um grande desafio. Mas, a mudança aplica-se também à Administração Pública. Houve, sem dúvida, uma modernização nas últimas décadas, tendo por alavanca principal os fundos europeus. E sendo certo que há sectores que funcionam e estão no bom caminho, outros nem por isso, e é preciso melhorar.
Agora, o Estado e a Função Pública perderam muito em termos de planeamento estratégico. Planear a vida das famílias e das empresas é imperativo de um país que quer assumir o futuro. Precisamos de saber o que vamos ser daqui a dez, quinze, vinte anos... qual o caminho a tomar. E, simultaneamente, ter tempo para pensar as políticas públicas que estão a ser executadas, qual o seu impacto e corrigir aquilo que está a falhar. Sinto que, no campo da Administração Pública, necessitamos de coordenação estratégica. Há várias mobilizações de alguns sectores, de instituições e organismos, mas vejo pouco planeamento e pouca coordenação.
Há em si um reformista, por definição?
Fiz a minha carreira profissional. E, depois, resolvi aceitar este desafio porque senti que poderia dar uma contribuição ao País. Este é o meu único posicionamento. Mas nada me demove de sentir e dizer que Portugal desbarata muitas oportunidades. Volto à questão do nosso paradigma mental, pouco consentâneo com o que devemos fazer nas sociedades modernas. E continuamos, como sempre, a ser uma geografia de contrastes e atitudes erráticas. Durante a pandemia, temos sido capazes de nos mobilizar, de consultar os cientistas, de ouvir os epidemiologistas, de convocar o conhecimento que existe. O País tem uma infra-estrutura de saberes que muitas vezes não é aproveitada. Só em situações extremas, como é o caso da pandemia, entre outros exemplos.
Falta a tal coordenação, pensamento estratégico consequente, executar bem e no tempo certo?
O País, apesar de tudo, está a mudar. Basta olharmos para várias empresas e, especialmente, os chamados unicórnios, start-ups que têm valorizações a partir de mil milhões de euros. Só em Portugal, existem cinco, seis, que emergiram por iniciativa de jovens, que são muito empreendedores, muito inspiradores. Estive recentemente numa sessão promovida pela AICEP [Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal] em que interveio Nuno Sebastião, da Feedzai, com um discurso altamente motivador e contagiante. Por essa empresa – cuja sede ele faz questão de manter em Coimbra, no Instituto Pedro Nunes – passam hoje, através das suas plataformas informáticas, cerca de 20% das transacções financeiras mundiais, o que é verdadeiramente notável. E isto representa o outro lado da questão, o lado bom. Uma nova geração não afundada nos muros do nosso país, mas que ‘pensa global’, que tem muitas capacidades, que empreende, que quer fazer diferente ou, melhor dizendo, coisas que nos diferenciam e tornam competitivos e relevantes. A parte encorajadora em todo este cenário passa, igualmente, pelo nosso tecido produtivo, desde a agricultura aos bens, aos equipamentos, às indústrias da saúde, às biotecnologias.
No plano da supervisão e monitorização do PRR, que leitura faz do sector primário?
É decisivo. Jamais seremos um país resiliente, sem uma fileira agro-alimentar que seja pujante, que se desenvolva. Ao longo dos últimos anos, o sector primário tem dado uma resposta excelente aos novos desafios, não só em termos de criar valor, de criar produto, de ser fundamental nas exportações portuguesas, muito participativo nos maiores mercados mundiais, num contexto de competição maior do que nunca...
E fazendo da qualidade o nosso principal argumento competitivo...
Absolutamente. Qualidade na inovação. E sucedem-se as empresas a assumir essa aposta. Precisamos de maior união de esforços, de plataformas colaborativas. Na construção da marca Portugal, a AICEP tem vindo a fazer um trabalho extraordinário, que está a dar os seus frutos, e se lhe forem dados os instrumentos e o acesso a plataformas com todos os interlocutores, vamos conseguir grandes avanços. Não podemos deixar de acreditar em nós. E por isso, muitas vezes, não temos uma relação muito boa com o País, com o futuro.
Hoje, perante os fenómenos da desertificação e das alterações climáticas, só para dar dois exemplos significativos, a urgência pede vinculação, compromisso, atitude global, sem não-alinhados. Concorda?
Temos de ter a consciência de que aqui mesmo, em Portugal, as alterações dos climas estão a fustigar o nosso território. Dou muitas vezes o exemplo do sistema costeiro, que era estável; houve durante milhares de anos essa estabilidade. E a partir da última década do século passado, vimos assistindo a um comportamento transgressivo – dos 950 quilómetros de costa, hoje cerca de 25% estão em erosão, e isso sente-se na Figueira da Foz, em Aveiro, no Sado, na Ria Formosa. O drama é que 75% da população portuguesa está concentrada na faixa litoral, e 85% do nosso PIB [Produto Interno Bruto], da riqueza que geramos, vem precisamente daí.
Como reverter a situação e repovoar, a níveis satisfatórios, o Interior?
Há uma absoluta necessidade de reequilibrar este movimento. Se não fizermos nada, vamos ficar reféns da erosão costeira, com todos os custos, desde logo humanos, que resultam dessa inclinação para o Litoral. Não podemos esperar muito mais para mudar o nosso pensamento sobre o território. Temos a gestão integrada dos sistemas agrícola e florestal, dos recursos hídricos. É hora de generalizar a fibra óptica em todo o País, de atrair uma nova geração de agricultores para o Interior. O 5G é, definitivamente, crucial na agricultura de alta precisão, com recurso às imagens para a monitorização dos terrenos, dos ciclos agrícolas, para trabalhar a qualidade e a informação, como deve ser e o futuro manda. Por isso, não me canso de defender que tudo se pode conjugar. Não hesitemos em atrair os nómadas digitais. E o nosso país tem excelentes condições para os fixar aqui. A contrastar com a desertificação, vejamos os bons exemplos que nos dá o Interior de Portugal. O quanto evoluiu, apesar de tudo, nas últimas décadas. Penso em Bragança, Covilhã, Castelo Branco, Elvas... e tantas outras cidades e regiões. E a evolução a que me refiro, traduzida na criação de condições permitindo reter e atrair as novas gerações, depende muito, não tenhamos dúvidas, da qualidade das lideranças, da visão estratégica e do inconformismo dos autarcas.
O tempo corre a uma velocidade nunca vivida – ou percepcionada – assim. Como se sente no meio do vórtice, neste “olho de furacão” que a todos envolve, num caminho sem inversão de marcha?
Quanto mais olhamos para o passado, mais longe temos o futuro. Este pensamento, que me acompanha desde há muito tempo, leva-nos àquilo que foi a transição do século XIX para o século XX. O mundo vivia, então, uma grande turbulência. As cidades estavam condenadas. O transporte era todo um cenário de carroças e milhares de cavalos; e daí o estrume, que se acumulava nas ruas, a pestilência, as doenças tantas vezes fatais. Em 1896, Nova Iorque promove o primeiro congresso de planeamento urbano; ao fim do segundo dia, o evento encerrou sem solução à vista. Um drama que parecia comprometer, definitivamente, o futuro das grandes urbes. Mas eis que, quatro anos depois, Thomas Edison e Henry Ford se sentam, frente a frente, para discutir qual seria a matriz energética do novo século. Se a electricidade, se o petróleo… Os dois estavam certos. Hoje, é fácil concluir que mais certas, visionárias e futuristas eram as ideias de Edison. Com este episódio, pretendo, simplesmente, dizer que o que nos vai salvar são os desafios, a nossa capacidade de inventar, de criar novas soluções para o mundo. O que aconteceu naquela altura é que o automóvel foi recebido como o grande salvador das cidades. Cento e vinte anos depois, estamos numa encruzilhada… Porque este modelo também perturba o Planeta com as emissões de CO2. E longe de mim e de nós, demonizarmos o passado e as fontes energéticas, nomeadamente o gás, fonte que considero determinante para a transição e que pode servir como back-up para a transformação energética. É, vejamos, o mais limpo dos combustíveis fósseis; substituir uma central a carvão por uma central a gás torna as emissões muito inferiores. Mas nós, na Europa e no Mundo, estamos a perder o norte, a ‘hostilizar’ tudo – incluindo o gás. Com isso, é a agricultura que será fortemente afectada; o espaço europeu está desprotegido neste domínio; em relação aos fertilizantes minerais, a China cancelou as exportações de fosfatos; a Bielorússia, grande produtor de potassa, também vai pelo mesmo caminho. Enfim. É preciso fazer leituras correctas, conscientes e clarificadoras. Para entender a complexidade do Mundo. E para que as nossas indústrias não sofram. Porque menos fertilizantes resultam em menos colheitas – logo, menos alimentos. É recomendável, necessária e urgente, mais racionalidade por parte dos grandes decisores mundiais.
E a transição digital, que leitura faz deste tópico?
Um estudo da [consultora norte-americana] McKinsey conclui que as novas tecnologias digitais podem ter um impacto dez vezes mais rápido comparando com o que sucedeu com a Revolução Industrial, e traduzindo uma escala 100 vezes maior. Isto pode ser transformador. A lei do crescimento exponencial – que é muito mal compreendida pela espécie humana – leva-nos, em consciência e sem reservas, a adoptar a digitalização. Ainda que isso não se possa reduzir à simples entrega de um computador às pessoas… Por aí, não vamos lá. A Internet aponta-nos para outros horizontes, bem mais largos e distintos. Concretizando, eu diria que temos competências digitais para reconfigurar as cadeias de produção, as cadeias logísticas, usar as plataformas electrónicas das empresas. Gostava de assinalar uma empresa, em Portugal, que está a investigar no sentido de criar a primeira rede de pescas no Mundo feita exclusivamente a partir de ‘matéria-prima’ biológica, ou seja, sem interferir com a poluição dos rios e dos mares, inovação que, a acontecer, será algo de extraordinário. Na mesma linha, destaco a criação de centros tecnológicos e tudo o que de positivo nos traz e pode vir a trazer a bio-economia. Substituir os fertilizantes químicos por soluções biológicas é um feito notável. O caminho é por aqui: olhar para e pela Natureza. Porque muitos dos nossos problemas advêm da circunstância de andarmos divorciados… É preciso haver uma interacção energética com o sistema terrestre. Porque o meio ambiente é capaz de criar resiliência e produtividade. E nós temos andado a falhar, ao transformar recursos em lixo.
O que significou para si trabalhar e mover-se no universo Gulbenkian?
Marcante. Sempre uma revelação. Calouste Gulbenkian foi um dos grandes impulsionadores das transformações que ocorreram no século XX. Um grande empreendedor, uma inspiração, naturalmente com os constrangimentos e condicionalismos do seu tempo, mas o seu legado e a sua obra são notáveis. Criou uma Fundação que é absolutamente indispensável para o País. Também ele foi um pioneiro, um visionário.
Como afirmava – e não se perguntava – Fernando Pessoa, a fechar o poema “Infante”, o que falta para cumprir-se Portugal?
Mudarmos – insisto – o nosso paradigma mental. Sermos capazes, enquanto sociedade, de construirmos um elo colectivo, um propósito, e animar essa transformação. Uma pensadora alemã, que eu admiro, a Hannah Arendt, explica isso muito bem: as sociedades que têm um elo colectivo empreendem e criam riqueza. As que não dispõem desse elo vivem com muito mais dificuldade. E Portugal, quer queiramos, quer não, muitas vezes parece uma colecção de cidadãos que se odeiam e guerreiam entre si. Inventam guerras, tantas vezes ‘de alecrim e manjerona’… Deixemo-nos disso. Centremos as nossas atenções em coisas relevantes. Como o modelo de governance, aproveitando mais informação, plataformas de cidadãos, gente que tem ideias, que quer participar. É preciso ouvir essas pessoas. Há muitos saberes que o País tem acumulado em vários sectores. Portanto, o que falta fazer é isso tudo e mais ainda. Como identificar, entre os vários clusters existentes, quais os saltos tecnológicos que nos podem propiciar o desenvolvimento. E isso cabe, sobretudo, às nossas empresas.
Para onde deve apontar o nosso farol?
Devemos dar muita atenção às pessoas e à educação. Apesar dos avanços proporcionados pela democracia, mesmo assim temos na Europa uma taxa muito reveladora de pessoas que não terminam o ensino secundário. É tarefa de Portugal apostar na qualificação. E ter um pensamento global. E trunfos não nos faltam. Somos um país universalista. Muito bem recebidos em vários quadrantes do Mundo. Conseguimos eleger um Secretário-Geral das Nações Unidas, um presidente da Comissão Europeia, vários Altos Comissários em diferentes compromissos universais. Com estas pontes já construídas, todas elas para o exterior, agora é tempo de fazermos o mesmo para o interior, para dentro de nós próprios, enquanto território e País. Criemos plataformas transformadoras. Olhando o Mar, ele está, estará sempre, presente. Nós somos marítimos. E é quase uma constante na nossa história: quando nos virámos para o Mar, Portugal prosperou; quando lhe virámos as costas, o País definhou. A nossa Zona económica exclusiva, que é já a terceira maior da União Europeia, vai crescer. Saibamos, pois, tirar partido desse crescimento. É também nesse contexto que defendo a criação de uma Universidade Atlântica, nos Açores, e outra na Madeira, para estudarmos, desde logo, as questões climáticas. No meu pensamento, há outras prioridades que o nosso farol deve iluminar, como os centros de resiliência, para tratarmos do risco. O sísmico, o climático, o hídrico, o alimentar. Estou convencido de que podemos vir a ter uma grande crise alimentar. Daí a necessidade de darmos robustez ao sector primário. E preparar o País.
Crê que seremos bem-sucedidos?
A esperança é a gramática da vida. Acredito profundamente. Se não tivermos esperança, somos dominados pelos demónios. E há muitas teorias hoje que apontam para o ‘naufrágio’, que a civilização está perdida… O pessimismo, nesta esfera, é uma espécie de apelo à irresponsabilidade, que não pode acontecer. Perante as próximas gerações, não podemos expropriar o futuro. Enquanto elo colectivo, estamos todos convocados para construir as bases de renovação da sociedade, de um modelo adequado de desenvolvimento económico-social, adaptado à economia circular, dando valor à água, ao capital natural, ao clima, à luta contra a poluição, ao ar e à sua qualidade. Tudo isto tem um valor inominável. Estamos a fazer essa descoberta. Cabe-nos a tarefa de revolucionar as nossas métricas. E de apostar num desenvolvimento mais sustentável. De maior redistribuição de riqueza e de bem-estar.