A proximidade do sector bancário em relação às famílias e às empresas, a criação de produtos com condições de financiamento favoráveis e a rápida resposta às necessidades vão determinar o sucesso da nossa retoma económica”. A afirmação é do Ministro do Ambiente e da Ação Climática. Palavras que sublinhamos numa entrevista que, ao ser agendada, apontava inicialmente para outras questões, a começar pelo Pacto Ecológico Europeu e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Quis o destino que esta conversa acontecesse mais tarde, já em plena crise pandémica. Inevitavelmente, a entrevista a João Pedro Matos Fernandes também passou por aí. Sem perder de vista o que depois das tormentas… virá. Mas, como escrevemos na capa, acreditamos que logo virá o verde para cumprir o futuro
A caminhada de Portugal rumo à neutralidade carbónica, que o Governo espera ser possível em 2050, é algo que o desassossega em termos de avaliação permanente?
Portugal estabeleceu a sua visão de médio e longo prazo e definiu uma trajectória de redução de emissões criando o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, aprovado pelo Governo, no ano passado. O Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 estabelece as metas a atingir na próxima década, concretizando as políticas e medidas de descarbonização a adoptar. Os mecanismos de acompanhamento, monitorização e reporte do progresso alcançado estão há muito estabelecidos. É através destes instrumentos que podemos afirmar que Portugal já reduziu as suas emissões em 21%, desde 2005, e alcançou uma incorporação de renováveis no consumo final de energia de 30%, com 53% na electricidade. Mas ser neutro em carbono implica que todos os sectores da economia incorporem este objectivo. E é por isso que estamos a desenvolver a avaliação climática das políticas a incorporar no processo legislativo.
Que desafios, que obstáculos especialmente difíceis de transpor se perfilam no nosso horizonte?
De momento atravessamos um desafio para as nossas sociedades e para o nosso modo de vida. Acredito, no entanto, que após a passagem desta crise global, as questões ambientais e climáticas voltarão a ser uma das prioridades. Os desafios climáticos não desapareceram. A neutralidade carbónica é prioritária para assegurarmos o bem-estar das nossas sociedades futuras. A recuperação económica não deve apenas recuperar a economia. Deve definir um novo rumo de desenvolvimento económico sustentável que crie riqueza e prosperidade futura. Em relação ao financiamento da transição para uma economia neutra em carbono, esta exige um investimento de um bilião de euros até 2050, com grande parte deste investimento a ser feito pelas empresas e pelas famílias, mas também pelo Estado. Estamos a falar sobretudo numa reorientação do investimento para equipamentos, veículos e infraestruturas sustentáveis. O Quadro Financeiro Multianual para o período 2021-2027 já contempla que 25% do financiamento tem de ser alinhado com os objectivos da política climática. Também o Banco Europeu de Investimento assumiu uma política de investimento verde alinhada com o Acordo de Paris e o debate em torno das finanças sustentáveis conduzem também a este objectivo. Outro dos desafios está em garantir que esta transição seja feita de forma justa e coesa e que não deixe ninguém para trás. Estamos, por isso, a preparar o Plano de Transição Justa de forma a ser possível aceder ao Mecanismo para a Transição Justa, lançado pela Comissão Europeia, e que irá abranger as regiões do País com sectores em transformação ou onde possam ocorrer eventuais impactes sociais da transição.
O que vê quando olha, hoje por hoje, para a cultura de sustentabilidade dos portugueses?
Os portugueses estão hoje mais vigilantes no que diz respeito aos desafios da sustentabilidade. A última sondagem do Eurobarómetro (2019) concluía que nove em cada 10 portugueses consideram as alterações climáticas um “problema muito sério” e 74% dos entrevistados assumiam ter tomado iniciativas de combate às alterações climáticas, mais do que na média da União Europeia (UE). A transição para uma economia neutra em carbono deve ser feita com o apoio da sociedade, a qual deve ser também um agente de mudança. É por isso fundamental promover acções de sensibilização e de educação ambiental e envolver os cidadãos nesta dinâmica para que esta cresça. Por outro lado, Portugal dispõe de um conjunto de indicadores que espelham o sucesso das medidas adoptadas ao longo dos últimos anos. Por exemplo,em 2019 foram financiados mais de 1.000 veículos eléctricos pelo Fundo Ambiental – somos já o quarto país da Europa no número de vendas de veículos eléctricos; o segundo com menores emissões CO2 dos veículos que são introduzidos no mercado; e o quarto com maior incorporação de renováveis na produção de electricidade. Ainda no contexto europeu, Portugal foi o país que, entre 2017 e 2018, mais reduziu as emissões do sector da energia, entre outras, demonstrando que a sociedade tem vindo a reagir positivamente às políticas de descarbonização. Também assistimos a um crescente compromisso por parte de empresas que estão a colocar a neutralidade carbónica e a economia circular no centro das suas estratégias de negócio. Conhecemos exemplos de empresas têxteis, no sector automóvel, na cerâmica, na cortiça, na agricultura. São empresas que estão à procura de novos modelos de produção, novos modelos de crescimento e de novos modelos de financiamento. São empresas que procuram garantir a eficiência e sustentabilidade dos nossos recursos naturais e que geram, não só retorno financeiro, mas também bem-estar social. No fundo, são empresas que querem ter sustentabilidade financeira na economia de hoje, mas também na economia do futuro.
Que papel atribui o Governo ao sector financeiro para que possamos dizer ‘missão cumprida’ em 2050?
Sabemos que para atingir os nossos compromissos de neutralidade carbónica, vão ser necessários cerca de dois mil milhões de euros em investimento adicional, por ano, até 2050. Calculamos que cerca de 85% deste investimento seja feito pelas empresas e famílias portuguesas. Ou seja, o sector financeiro terá aqui um papel crucial, porque são essencialmente os bancos que vão emprestar o capital necessário para atingirmos esta transformação. Ao longo deste período, é importante que os bancos sejam proactivos, que criem produtos atractivos que apoiem o financiamento de uma economia baixa em carbono e circular, e que comecem, urgentemente, a integrar nos seus processos de avaliação de crédito os riscos ambientais de cada investimento. Queremos que os bancos meçam não só o seu sucesso financeiro, mas também o seu contributo para a sociedade. Em 2050, queremos um sector financeiro robusto, com portefólios resilientes às alterações climáticas e cujas escolhas de financiamento demonstrem um claro contributo para que se atinjam os objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, sejam eles de natureza ambiental ou social.
No plano das oportunidades para lá chegarmos, de que forma uma instituição financeira com o perfil e a esfera de competências de um Banco (público) Verde poderá ajudar a Banca a promover investimentos em actividades ambientalmente sustentáveis?
A intervenção do Estado para atingir o objectivo da neutralidade carbónica será multifacetado. Alcançar os objectivos propostos, garantindo simultaneamente uma transição justa e coesa, assegurando o bem-estar social para todos, implica que o contexto regulatório, social e de mercado dê os sinais adequados aos cidadãos e às empresas no sentido de activarem a sua contribuição para esse objectivo. E se queremos acelerar a transição, necessitamos de novas políticas de financiamento e políticas fiscais que promovam uma economia neutra em carbono, bem como novas colaborações entre o sector público e privado. A criação de uma entidade financeira de apoio ao financiamento sustentável será um dos vários instrumentos para incentivar e apoiar esta transição, e que estamos de momento a analisar. Entretanto, com o apoio de duas ONG internacionais, está a decorrer a elaboração de um estudo para identificar as melhores práticas com vista a operacionalizar uma estrutura de financiamento sustentável em Portugal. Esta nova instituição irá garantir uma maior coordenação e eficiência dos diversos fundos disponíveis que apoiam as empresas portuguesas. O estudo, que contará também com a colaboração de entidades governamentais, instituições financeiras e empresas, estará concluído no Verão. Recordo que lançámos já, em 2019, o Fundo para a Inovação, Tecnologia e Economia Circular, que apoia as nossas PME, oferecendo-lhes melhores condições de crédito para investimentos na transição para uma economia baixa em carbono e circular. Esta linha de crédito é disponibilizada pela banca nacional aos seus clientes e dispõe de um montante até 100 milhões de euros. São esforços como este que queremos multiplicar.
No ano passado, os bancos assinaram o Compromisso para o Financiamento Sustentável em Portugal, dinamizado pelo seu Ministério. Será realizado algum tipo de avaliação sobre como os bancos, e restantes instituições, estão a cumprir esses compromissos assumidos?
Continuamos o diálogo construtivo que o Governo tem vindo a desenvolver no âmbito do Grupo de Reflexão para o Financiamento Sustentável, que conta com o apoio do Banco de Portugal e a participação de 20 instituições do sector financeiro. Como referi, cabe à banca um papel-chave na dinamização do financiamento sustentável, e este grupo tem sido fundamental na partilha de conhecimento e na concretização de objectivos de promoção de uma economia verde, definidos na Carta de Compromisso para o Financiamento Sustentável. Assistimos, no último ano, a um progresso significativo no nível de expertise das instituições que fazem parte do Grupo de Reflexão. O tema do financiamento sustentável é um conceito que vem ganhando reconhecimento ao longo da última década, e que representa uma tremenda inovação na forma de pensar nas empresas do sector financeiro e das empresas seguradoras. O Grupo de Reflexão tem feito o acompanhamento dessa evolução e os compromissos assumidos estão a começar a ser implementados. Neste contexto, devo assinalar que o Banco de Portugal publicou recentemente um documento que formaliza a sua posição e compromisso com a sustentabilidade e o financiamento sustentável, e em que estabelece como um dos eixos prioritários de actuação a identificação e a avaliação dos riscos associados ao impacto das alterações climáticas. Este é um esforço muito relevante, dado que sabemos que eventos climáticos extremos podem ameaçar a estabilidade do sistema financeiro.
Que outras actividades podem entretanto antever-se, no curto prazo, do Grupo de Reflexão para o Financiamento Sustentável?
Além da monitorização e implementação dos diversos compromissos assumidos, bem como do acompanhamento dos desenvolvimentos a nível regulatório por parte da Comissão Europeia, na mais recente reunião do Grupo de Reflexão foram definidas várias opções para os próximos passos. Começamos desde já pela necessidade de perceber o que é feito actualmente; que financiamentos verdes estão já a ser feitos a nível nacional. Para tal, iremos adoptar a Taxonomia desenvolvida no âmbito do Plano de Acção para Financiar um Crescimento Sustentável da Comissão Europeia. Em concreto, vamos trabalhar conjuntamente com vista a criar um mecanismo de monitorização dos investimentos verdes em Portugal, tanto públicos como privados. Isto permitirá uma avaliação sobre o financiamento disponibilizado em linha com o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, e o seu progresso ao longo dos anos.
Que impacto poderá ter a Taxonomia europeia – que precisamente define as actividades ambientalmente sustentáveis – no acesso das empresas portuguesas ao financiamento?
A Taxonomia será uma ferramenta indispensável na definição das actividades económicas e tipos de investimentos que são considerados verdes, e apresenta uma clara direcção para os investidores e os mercados de capitais nacionais e internacionais, em linha com as prioridades do Pacto Ecológico Europeu e também com a trajectória prevista no Acordo de Paris. Nós expressámos o agrado pela publicação do Relatório Final da Taxonomia em Março, e consideramos que esta informação vai simplificar muito os processos para as empresas e para as entidades financiadoras. Um claro benefício é que todos os intervenientes têm agora um dicionário partilhado, com critérios científicos, o que certamente irá facilitar e acelerar o acesso ao financiamento de projectos por parte de investidores que têm demonstrado um grande interesse por este tipo de investimentos. Isto representa, também, uma grande oportunidade para as empresas portuguesas que investem em projectos e tecnologias sustentáveis, dado que se espera que estes financiamentos venham a ter melhores condições pelo elevado interesse do mercado. Outro ponto igualmente importante é a transparência nos critérios que as empresas terão de analisar para avaliar se as suas actividades actuais e os seus investimentos futuros estão alinhados com um cenário de neutralidade carbónica. A Taxonomia define ainda trajectórias de transição tecnológica, dando uma indicação às empresas sobre o tipo de investimentos que devem fazer para serem sustentáveis no longo prazo.
Ainda reflectindo sobre este cenário em que relevam a defesa do equilíbrio ambiental e a neutralidade carbónica, enquanto ‘drivers’ das grandes decisões do plano de crescimento europeu (afinal de contas, o verdadeiro ‘Green Deal’ da UE), o que pode esperar o sector bancário?
A neutralidade carbónica está no centro do Pacto Ecológico Europeu que constitui a estratégia de crescimento para a Europa. Por isso, a Lei do Clima, que foi uma das primeiras iniciativas apresentadas pela Comissão, consagra esse objectivo, assumindo que todas as políticas sectoriais devem estar formatadas nesse sentido. As prioridades estratégicas para a Europa estão escolhidas: a cadeia de valor das energias renováveis, do hidrogénio, das baterias e uma maior digitalização de toda a economia são alguns dos temas. Por sua vez, conforme decorre do Plano de Acção da Economia Circular, os sectores da reciclagem e da reparação e remanufactura deverão acompanhar a mudança de paradigma na utilização dos recursos que deverá evoluir de modelos de lineares para modelos circulares. E estas orientações claras são muito importantes para os bancos. Tal como em Portugal, a Europa reconhece que será o sector privado a mobilizar uma parte significativa dos investimentos necessários para a concretização dos objectivos do Pacto Ecológico Europeu. Em 2019, a Comissão publicou também o Plano de Acção para Financiar o Crescimento Sustentável. Este documento antevê uma mudança estrutural para o sector financeiro, ao propor a reorientação dos fluxos de capitais para investimentos sustentáveis, e ao exigir que se considerem os riscos financeiros decorrentes das alterações climáticas, do esgotamento dos recursos, da degradação do ambiente e das questões sociais. Há 10 medidas que estão a ser desenvolvidas e traduzidas em regulamentação europeia que vão causar uma mudança profunda do paradigma actual do sector financeiro. Os bancos vão ter de se adaptar a uma nova realidade que apoia uma economia justa e neutra em carbono.
Estes novos tempos, ditados pela imprevisibilidade da evolução da pandemia Covid-19, estão a convocar todas as energias, todas as capacidades dos portugueses para minimizar os impactos de um desafio que todos estamos empenhados em ultrapassar, minimizando tanto quanto possível as suas consequências. O que lhe vai na alma e no pensamento perante esta realidade que nos surpreendeu, assim quase de supetão?...
No topo das prioridades, neste momento, tem de estar a defesa da saúde das pessoas e o apoio às empresas, para que se possa ultrapassar esta fase dramática que todos vivemos. Uma fase que sabemos ser temporária e exógena à economia, mas que terá fortes impactes nos próximos tempos. É necessário manter em funcionamento os serviços básicos como sejam o abastecimento de água, de energia, a recolha de resíduos e os transportes, porque sem estes colocamos em risco a vida das famílias e o funcionamento da economia. Mas esta situação não nos deve desviar do caminho que já iniciámos. O Pacto Ecológico Europeu é o novo modelo de desenvolvimento económico, criador de emprego e riqueza e deverá ser a matriz para a recuperação económica da Europa. Sabemos que serão criados significativos pacotes de estímulos para relançar a nossa economia, tanto para as nossas empresas como para as nossas famílias. Devemos também garantir que esse novo fôlego seja um catalisador de bem-estar não só no curto-prazo, mas também no futuro. Este novo pacote de estímulos deverá promover uma mudança estrutural sustentável.
Que espera o Governo de instituições com o perfil e a tradição do Crédito Agrícola no quadro das respostas a esta crise tão complexa e de consequências que não se podem antecipar?
Os bancos têm neste momento uma oportunidade muito importante de demonstrar o seu valor para a sociedade, e assim recuperar a sua reputação. Enquanto no passado foi a sociedade que teve de fazer sacrifícios para salvar a Banca, agora é a vez das instituições bancárias não deixarem ninguém para trás. As moratórias nos pagamentos já acordadas foram um importante passo. Os bancos terão, sem dúvida, um papel fundamental na recuperação económica, através do apoio que podem conferir às empresas e às famílias. É muito importante fazer chegar o financiamento a quem precisa, e ninguém está mais perto do nosso tecido empresarial e das famílias do que a Banca. Essa proximidade, a criação de produtos com condições de financiamento favoráveis e a rápida resposta às necessidades vão determinar o sucesso da nossa retoma económica.