E entretanto o mundo parou. A Cultura faz por voltar a respirar e pulsar, qual coração fora do peito. Mas a pandemia continua a impor a sua lei e a empurrar para outras calendas, impossíveis de fixar no tempo e no espaço, o espectáculo adiado. Assim acontece em Portugal e noutras paragens. É o mundo a esperar e desesperar por melhores dias, na vertigem de uma vacina que urge subir ao palco da vida. Para que todos os que constroem a magia sob os holofotes, no silêncio ou na sombra, nos façam sonhar uma e outra vez. Por estas e por outras, ouçamos José Jorge Letria. Homem de tantas artes e talentos, chegando-lhe, para o caso, a condição de escritor, jornalista e, claro está, de presidente da Sociedade Portuguesa de Autores
A Cultura e os seus profissionais nas diferentes competências, artes e talentos, vivem dias de grande tensão e preocupação, cenário sombrio em que a pandemia parece ter subido ao placo por tempo indeterminado…
Penso precisamente no título do livro ao qual estamos profundamente ligados [“Um Mundo Aflito – Memória de um tempo de ausência”; texto de José Jorge Letria e fotografias de Inácio Ludgero, edição Guerra & Paz] que resulta de uma observação partilhada e reflectida do impacto do período de confinamento. E então vemos que, levantado o estado de emergência, permanecemos aflitos, inquietos, suspensos na incerteza dos dias.
Lembrando um verso de Vinicius de Moraes, no Soneto de Separação, “de repente da calma fez-se o vento”…
Aconteceu tudo de repente, de facto. E o mundo está assim, aflito, como eu escrevo e digo e repito. Somos confrontados com desafios e ameaças que não imaginávamos. Não sabemos no que isto vai dar. É realmente um desafio que nos inquieta e nos põe em causa em cada dia que passa, sobretudo agora neste ciclo em que a propagação do vírus se acelera e intensifica. E isto também se agrava com uma realidade que vem do tempo mais drástico do confinamento, que é o tempo da ausência. Subitamente, constatámos a existência de algo que não conhecíamos: o vazio das cidades, o vazio dos parques, das gares, do ponto de partida e de chegada dos comboios, dos aviões… Não estávamos preparados, naquele mundo acelerado e global, para viver um tempo de ausência. E o tempo de ausência é mais grave e mais penoso. Porque nos deixa sem respostas. Eu estou a falar em nome de uma Sociedade [SPA] que tem 26 mil autores de todas as disciplinas, uma organização com 167 trabalhadores, a maior parte dos quais ainda em teletrabalho, porque tivemos de reorganizar toda a estrutura funcional desta casa, que é uma empresa cooperativa que vai completar cem anos de vida em 22 de Maio de 2025. Devo dizer que uma estrutura e uma empresa com estas características – e, mais ainda, com esta responsabilidade – não pode pensar no futuro se não tiver dinheiro para cobrar e para distribuir. Vejamos. A existência de uma Sociedade de Autores – para além da defesa estrutural e profunda que faz dos direitos dos criadores, à luz do Código do Direito de Autor e dos Códigos gerais que regem o Direito – pressupõe justamente que, no dia-a-dia, tem de garantir – insisto – o cumprimento da dupla missão de cobrar e distribuir. Ora, a realidade trazida pela pandemia atingi-nos profundamente. Eu diria, mesmo, inquietantemente. Até ao final do ano, estimamos uma quebra superior a 30%, o que significa a impossibilidade de a SPA cobrar mais de 30 milhões de euros. E se este valor não é cobrado… pois também não é distribuído.
Sublinhado as suas palavras, a inquietação que gera o Mundo aflito está cá. E vai intensificar-se. Mas, ainda assim e apesar de tudo, há sinais em sentido diverso, positivo, encorajador…
Sim. Apesar da adversidade, fortalecemos e reforçámos a nossa dinâmica de solidariedade – imediatamente, nas duas semanas ou três que se seguiram ao início da pandemia e à declaração de confinamento, deslocámos uma verba de 100 mil euros que iria ser aplicada na nossa Gala do CCB/RTP 2 para apoio à actividade cultural e artística. Temos apoiado muita gente. Até ao momento [esta é, aliás, uma notícia que será tornada pública poucos dias depois da realização da entrevista] a SPA atribuiu mais de 700 mil euros no quadro dessa solidariedade. Mas, se me perguntam se isto é suficiente… pois é claro que não chega. Nem a nossa solidariedade nem a do Ministério da Cultura, nem a da Fundação Gulbenkian… Somando todas as vontades, não vai chegar, nem de perto nem de longe, para apaziguar a inquietação e o sofrimento de dezenas de milhares de trabalhadores que, organizando e gerindo companhias de teatro, galerias de pintura, palcos (com o som e a luz), não têm respostas. E eu, para isto, tenho uma resposta que é simples, redutora, mas muito objectiva e sincera: enquanto não houver vacinas, a paz e a tranquilidade relativamente ao que somos e fazemos… não estarão de volta. Pelo nosso lado, vamos tentando garantir a manutenção e a estabilidade dos valores fundamentais para pagar salários aos nossos trabalhadores e também para assegurar os custos de funcionamento das Delegações da SPA, que vão desde Braga às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Ou seja, no quadro desta inquietação, temos as respostas que o quotidiano nos permite. A solução é outra coisa, é outra realidade.
Inquietação é o tal sentimento que ora se fixa na alma, ora emerge à flor da pele, num desassossego que é o espelho nítido da incerteza. Mesmo antes da pandemia, não era já um pouco assim, para muita gente da Cultura, aqui e noutras paragens deste mundo?
Falou de duas coisas que sinto agora mais presentes do que nunca. Presentes não só no olhar que lanço sobre esta realidade, mas também na resposta que lhe vou dar. A inquietação, infelizmente, é-nos bem familiar, faz parte da própria vivência e dinâmica do trabalho artístico e cultural. Os artistas, os autores, os criadores em geral estão a sofrer neste momento as consequências da sua precariedade. Uma coisa que se alongou e adensou durante décadas fruto do carácter precário da função e do estatuto. Não vale a pena falar disto com redobrada preocupação, pela simples razão de que isto é uma realidade com a qual lidamos desde sempre. E nós, SPA, fomos chamando a atenção de Ministros da Cultura e de Secretários de Estado da tutela, para a necessidade de criar um estatuto do autor português. Só assim poderemos superar esta vulnerabilidade gerada pelo carácter precário da nossa função e do nosso estatuto. Falámos com muita gente, com tanta gente que estimo e considero. Conseguimos realmente uma atenção concentrada e apurada naquilo que tínhamos a dizer. Mas… é o que se sabe. Ou não se sabe… Vejamos agora a questão do desassossego. Por um lado, resulta da percepção e da ideia que temos de que este carácter precário e vulnerável se mantém, o que só vem agravar a situação. E por outro lado, o desassossego manifesta-se pela circunstância de não termos respostas, nem soluções, quando olhamos para o calendário e para a geografia deste tempo. Dito de uma forma não redutora mas simplificada: enquanto não tivermos tranquilidade e não tivermos público, não há respostas a dar. Porque não há espectáculos sem público. Como, na realidade, não há escolas sem o elemento presencial dos alunos sentados a ouvirem a transmissão dos conhecimentos que têm de incorporar nas suas vidas, na sua memória. Portanto, o desassossego vai manter-se. E, não querendo ser profeta de uma realidade que me transcende e me condiciona, eu acho que esta realidade vai condicionar nos próximos anos muito daquilo que é a nossa relação com a vida, com a arte, com a cultura. Não voltaremos a viver uma realidade tranquila e descontraída e despreocupada, como vivíamos antes da pandemia, apesar de todas as dúvidas e interrogações que nos povoavam sempre que olhávamos para o mundo e para o Portugal que nós somos também. Portanto, tudo isto se vai manter. Gostaria de assinalar que tive responsabilidades durante quatro anos e até ao início deste confinamento [primeiro, foi presidente do Comité Europeu da Confederação Mundial das Sociedades de Autores e, depois, presidiu ao Grupo Europeu das Sociedades de Autores, com sede em Bruxelas]. Posso dizer que as sociedades europeias com as quais estou em contacto, como é o caso da francesa, da espanhola, da italiana ou da alemã (muito relevante a nível mundial) e a própria organização a que pertenço [integra actualmente a Direcção renovada do referido Grupo Europeu das Sociedades de Autores], todas estão muito preocupadas com o futuro. Porque enquanto não houver público… nada feito, nada acontece. O público é o mercado. E, neste momento, não há público.
E o mecenato, nas actuais condições económicas…
Não quero dar respostas definitivas, que são forçosamente redutoras, mas, nesta altura, pedir apoios a empresas é uma perspectiva cheia de reticências e pouco consequente. O apoio mecenático das empresas à criação cultural está muito condicionado e limitado, e eu não sei no futuro de médio prazo o que irá acontecer, mas tenho as maiores apreensões. Lido diariamente, através de emails, telefonemas e outros contactos – até recentemente da Feira do Livro – onde vou com as limitações que a pandemia nos impõe, com gente apreensiva, inquieta… Alguns mais deprimidos – e isso também tem a ver com a estrutura psicológica das pessoas – para além de serem criadores, são seres humanos, são cidadãos; vejo muita gente preocupada, muita gente angustiada, e muita gente, em alguns casos, à beira da ruptura, que é o afastamento da actividade.
Já os editores e livreiros parece que terão tido bons resultados nesta Feira do Livro…
Da segunda visita que fiz, onde estive com mais tempo, aí como autor em sessão de autógrafos, vi uma presença humana interessante e estimulante; naturalmente, as pessoas com as máscaras estão condicionadas e limitadas, e as próprias regras de circulação da Feira não facilitam a vida aos visitantes. Agora, sobre os resultados, perante os números que eu conheço, talvez o optimismo de algumas notícias peque um pouco por excessivo… Ainda assim, para ser sincero, não contava com tantos visitantes. E esse é, objectivamente, um sinal positivo e encorajador.
Enquanto não tivermos vacinas, enquanto não desanuviarmos esta incerteza, o caminho vai ser difícil…
Sem dúvida.
Mas podemos acreditar que o fim da tormenta poderá estar perto…
Claro que sim. E até lá, e mesmo depois da tormenta, é bom que repensemos a nossa relação com a Natureza. Eu tenho um grande interesse pela História. Há poucos dias, acabei uma série de 15 entrevistas com grandes figuras da cultura e das artes em Portugal, desde o José Pacheco Pereira ao António Victorino de Almeida, passando pelo Álvaro Cassuto, pelo Ruy Vieira Nery, pelo Carlos Fiolhais, pela Olga Roriz, pela Lídia Jorge… São 15 entrevistas sob o título genérico (ainda provisório) “O Vírus, a Cultura e o Futuro”, com lançamento agendado para Dezembro e chancela da Guerra & Paz. Verifico que estas pessoas que transmitiram a sua opinião, a sua posição e o seu escrutínio individual sobre os efeitos da pandemia na nossa vida – e também sobre o que é a perspectiva do futuro – todas elas convergem numa análise e numa conclusão que é inquietante e que corresponde muito com aquilo que sinto neste momento: quanto mais agredimos a Natureza e nos distanciamos dela, mais a Natureza nos põe em causa e condiciona a nossa presença no seu contexto. Pensando no futuro, enquanto não tivermos paz, mercado e público (duas palavras que, neste quadro, já aqui defendi que são sinónimos], não conseguimos imaginar o que é que vai ser a vida dos autores e a vida da Cultura. A Cultura é sempre, por definição, estrutural – um elemento precário da vida das sociedades, mas essencial nessa mesma vida. Creio, cada vez mais, que sem Cultura, sem imaginação e sem arte, não somos capazes de sonhar, de inventar, de reinventar e de criar uma nova dinâmica para a vida e para a relação com os outros. Portanto, enquanto não houver vacina, enquanto não houver serenidade que nos permita ter respostas para dar ao presente e ao futuro, vamos continuar a viver tempos assim, muito complicados e angustiantes. Todos nós temos esta percepção.
E agora, Ferreira de Castro para fecho de conversa que já vai longa…
Tivemos, na minha opinião, dois grandes escritores portugueses contemporâneos feitos no Brasil. O Ferreira de Castro é o caso de um homem que sai de Portugal, vai para terras brasileiras, primeiro para encontrar um rumo, um caminho de subsistência, e depois o seu universo ficcional é em grande parte ali construído, regressando depois e vindo a tornar-se um escritor de referência, sendo até proposto, mais de que uma vez, ao Prémio Nobel da Literatura. Outro escritor que associamos pouco ao país-irmão é Miguel Torga, mas para ele o Brasil é essencial, estruturante no seu pensamento e na sua perspectiva do que foi e é a obra, tanto a poética, como a memorialista. Numa linguagem simplificada, os dois foram feitos escritores no Brasil. Um país que lhes deu visão global, ajudando-os a perceberem melhor Portugal no espaço e no tempo europeus – e, sobretudo, no espaço civilizacional, que é um grande desafio para a civilização e para a descoberta. O Ferreira de Castro é hoje um escritor cuja obra está a ser redescoberta – e é importante que o seja. A SPA e eu próprio ficamos satisfeitos com isso. Com a morte de Ferreira de Castro, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, era eu então editor do jornal República, lembro-me de ter escrito que o seu desaparecimento representava uma viragem, uma mudança profunda, porque o homem da descoberta e da redescoberta do Portugal rural e do Portugal do mundo, nos magníficos livros que escreveu, terminava aí, para logo começar um ciclo em democracia, de partilha e de responsabilidade, que ele também corporizava. Agora, é muito importante que os escritores, os autores e os artistas em geral estejam presentes em novo ciclo de mudança e de transformação. Tal como aconteceu com a Gripe Espanhola, em que perdemos o Amadeo de Souza-Cardoso e outros portugueses eternos, também hoje, com esta pandemia, temos de perceber que, apesar de tudo, a Cultura e as artes, o pensamento e a espiritualidade são necessários para a nossa reinvenção. E o futuro, mesmo quando o presente mergulha nas trevas, é sempre possível.