Pioneiro da transplantação de medula óssea em Portugal, foi director do Departamento de Hematologia e do Programa de Transplantação de Medula Óssea do IPO de Lisboa, instituição a que já presidiu. Recebeu o Prémio SEAT para a Ciência em 1987, Prémio Nacional de Oncologia em 1994, Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos em 2015, Clinical Achievment Award do Grupo Europeu de Transplante de Medula Óssea em 2021, Medalha de Ouro por Serviços Distintos do Ministério da Saúde em 2022 e o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito da República Portuguesa em 2010. É na qualidade de presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia que vamos ao seu encontro, convocados pelo interesse em ouvir, de viva voz, o ‘missionário’ de um terceiro mandato de compromisso com a Vida, esse direito inalienável de quem nunca, por nunca, desiste da esperança.
Quase num abrir e fechar de olhos, a Casa Ermelinda Freitas passou a produzir em três regiões vitivinícolas – à Península de Setúbal, juntou-se o Douro e a Região dos Vinhos Verdes –, onde são trabalhados cerca de 500 hectares de vinha. O portefólio abrange já perto de uma centena de referências. E as medalhas, superando as duas mil, sucedem-se a um ritmo vertiginoso…Que notas destacaria ao observar a evolução das doenças oncológicas e, em particular, considerando a sua área de especialidade, as doenças hemato-oncológicas?
As doenças oncológicas estão a assumir o primeiro lugar entre as causas de morte junto da população mundial. Até há relativamente pouco tempo, eram as doenças cardiovasculares. É evidente que o mundo está cada vez mais assimétrico, com o peso da doença oncológica a não ser o mesmo em todas as geografias. E assim acontece porque nos países menos desenvolvidos as doenças infectocontagiosas são, ainda, a principal ou uma causa muito importante de morte. Mas, quando observamos as sociedades mais desenvolvidas, de facto o cancro está a posicionar-se na dianteira. A meu ver, há pelo menos uma explicação para esta tendência: a eficácia da prevenção e do tratamento das doenças cardiovasculares. No que reporta às doenças, é evidente que as medidas preventivas têm-se revelado bastante eficazes para alguns tipos de cancro. O exemplo mais significativo é do cancro do colo do útero, que hoje em dia é totalmente evitado com a vacinação. Do mesmo modo, a vacina contra a hepatite B também vem sendo muito importante para reduzir a percentagem de cancros do fígado. Em territórios onde pode ser decisivo o diagnóstico precoce, temos três tipologias em que os chamados rastreios são claramente benéficos: o já referido cancro do colo do útero, o cancro colo-rectal e o cancro da mama. E quando é possível o diagnóstico precoce, a probabilidade de cura aumenta substancialmente. Já em relação às doenças hemato-oncológicas, que constituem a razão de ser e de actuar da APCL, não faz sentido falar em rastreio ou em profilaxias. Desde logo porque estamos perante doenças indetectáveis antes de se manifestarem clinicamente.
Os sintomas são relativamente pouco específicos – queixas de cansaço fácil, algum emagrecimento, infecções persistentes, aparecimento de nódoas negras, hemorragias…
Sim, um quadro clínico cujos sintomas traduzem, afinal, o comprometimento da medula óssea. Nós sabemos que o cansaço deriva do excesso de uma anemia, logo, uma deficiente produção de glóbulos vermelhos; as infecções são consequência de uma redução da capacidade de os glóbulos brancos nos protegerem – e menos protecção quer dizer mais susceptibilidade. Finalmente, temos as plaquetas, células muito pequenas que têm a seu cargo o controlo das hemorragias. Quando, por exemplo, nos cortamos a fazer a barba, não sangramos de uma forma imparável porque as plaquetas têm justamente como missão controlar essas situações. As plaquetas são também produzidas na medula óssea. Portanto, a falência do funcionamento da medula óssea é uma das principais consequências de uma leucemia.
No domínio das soluções terapêuticas em relação às doenças hemato-oncológicas, que avanços gostaria de sublinhar?
O início do século XXI marca uma revolução muito importante com o desenvolvimento de novos fármacos. Novos fármacos que são a consequência de um melhor conhecimento dos mecanismos biológicos da doença e dos avanços na investigação básica, fundamentais para que se desse este salto qualitativo muito grande no tratamento, não de todas, mas de um número significativo de doenças oncológicas e, nomeadamente, das doenças hemato-oncológicas. Dos avanços mais relevantes eu realçaria, em primeiro lugar, o aparecimento das chamadas pequenas moléculas cujo resultado mais espectacular é, provavelmente, a solução terapêutica para a leucemia mieloide crónica: enquanto na maior parte dos processos oncológicos há múltiplas mutações envolvidas, neste caso, acontece apenas uma. Por isso, foi relativamente simples desenhar um fármaco que bloqueasse esta mutação e, muito importante, com menos efeitos secundários. Em boa verdade, uma doença que era invariavelmente fatal passou a ter na vida do doente um impacto equiparável ao que sucede com a hipertensão, a diabetes… A par desta notável descoberta das pequenas moléculas que podem interferir em mecanismos de activação oncológica, outro grande avanço é a estimulação imunitária. Todos os dias, temos no nosso organismo células que sofrem processos de transformação maligna. O nosso sistema imunitário, verdadeiro guardião do genoma, consegue eliminar essas células, não permitindo que elas originem problemas. Ora, foi um passo gigantesco perceber que as células tumorais conseguem enganar essa capacidade do sistema imunitário, descobrir como o fazem e desenvolver medicamentos que devolvam ao sistema imunitário essa função de vigilância tão importante. Entre estes avanços contam-se as CAR T cells, originalmente desenvolvidas nos Estados Unidos, já disponíveis em Portugal desde 2019 e que se têm revelado muito eficazes em determinado tipo de linfomas e de leucemias, permitindo a cura em 40% dos casos. No fundo, são avanços da ciência que abrem amplamente a janela de esperança a este universo de doentes, uma janela aberta para a vida.
Está a cumprir o terceiro mandato como presidente da APCL, que já confessou tratar-se do último, pelo seu entendimento de que este é o tempo ideal para passar o testemunho. Que notas faz questão de fixar ao observar a obra feita?
É imperativo começar pelo… princípio, antes ainda da minha presidência. A APCL surgiu em 2002 para, entre outras missões, promover a divulgação do conhecimento acerca das doenças hemato-oncológicas, apoiar os doentes e familiares, fomentar a investigação e oferecer a possibilidade a profissionais de saúde de fazerem formação ou estágios em centros de referência em Portugal e no estrangeiro. Tenhamos presente que, no início dos anos 2000, não dispúnhamos de praticamente nenhum dos tratamentos hoje disponíveis no contexto das leucemias agudas. Para muitas dessas doenças, o transplante de medula óssea era a única alternativa possível; ainda continua a ser muito importante, mas na altura era dominante. O que se verificava é que a maior parte dos doentes não tinha dador familiar compatível: para dois irmãos serem compatíveis, a probabilidade é de 25%; acresce que as famílias têm cada vez menos filhos; e quando não há dador na família, tem de se localizar um dador num banco ou registo de dadores voluntários de medula óssea. Quando nós começámos esta bela aventura da Associação, o número de dadores registados em Portugal não ultrapassava os 1.500, um dado absolutamente insignificante. Conjugaram-se, então, diversas vontades. Houve familiares de doentes, sobretudo crianças, que fizeram apelos no espaço mediático, e desencadearam-se cadeias solidárias. A resposta da sociedade portuguesa foi extraordinária: passámos de 1.500 para 400 mil (!), número atingido em 2010 e que se mantém bem consolidado. Tendo como referência o ratio de dadores por cada 10 mil habitantes, o registo português está na quinta posição mundial, equiparado a Espanha, mas superando claramente os Países Baixos e a Escandinávia. Este foi, afinal, o primeiro grande objectivo alcançado pela APCL.
O segundo grande objectivo terá sido, provavelmente, a construção da Casa Porto Seguro, em Lisboa, perto do IPO, inaugurada em Maio de 2023, para acolhimento de doentes e familiares…
Sem dúvida. A Casa Porto Seguro, cuja concretização foi temporariamente condicionada pela pandemia, surgiu como resposta a uma questão imperiosa: suprir as necessidades de alojamento geradas pelos três grandes hospitais de Lisboa que tratam de doentes com leucemias mieloides agudas e fazem transplantes – IPO, Santa Maria e Capuchos, cobrindo todo o Sul do País, as ilhas e os PALOP. Acontece que, em regra, a pessoa que faz um transplante tem de ficar na proximidade do hospital durante, pelo menos, os três meses seguintes. O internamento, se as coisas correm bem, é à volta de um mês; mas a situação de fragilidade dos doentes e a necessidade de uma vigilância apertada vai, pelo menos, até aos três meses. Assim se explica a importância desta obra. A casa tem oito quartos/suites, num investimento compartilhado por várias entidades, e acolhemos os primeiros doentes em julho. Faço notar que os doentes são-nos sempre referenciados pelos serviços sociais dos hospitais, a quem cabe a respectiva triagem – se os doentes não têm familiares em Lisboa com quem possam ficar, ou se os seus recursos económicos são insuficientes, não pagam nada. Nós temos patrocinadores para cada um dos quartos que cobrem, mais ou menos, cinquenta por cento dos custos de cada quarto.
Empresas cuja cultura cívica e cidadania activa se identifiquem com projectos desta natureza são bem-vindos…
Naturalmente. É disso exemplo o Crédito Agrícola, cuja 2.ª Volta Solidária mobilizou, a 30 de Setembro, Colaboradores e familiares com um duplo propósito: praticar uma actividade física e apoiar a causa da APCL. Uma causa maior que a todos – sociedade portuguesa, tanto na esfera pública como privada – deve sensibilizar, interpelar e, acima de tudo, mover.