O espaço mediático quer ouvir a sua voz. Uma voz avisada, credível, eloquente – mas muito simples. Todos o entendem. Por isso, as solicitações acontecem com toda a naturalidade do mundo, todos os dias, a toda hora. São os comentários, os webinars, as entrevistas para meios de comunicação de referência em Portugal e nos vários continentes. Na interpretação de Pedro Simas, 54 anos, cientista, o novo coronavírus e as mil e uma questões que desassossegam a população mundial têm sempre um racional, uma transparência, uma lógica acessível. Foi assim à conversa com a nossa revista. Na tarde de 27 de Maio, o entrevistado fez questão de receber-nos na sua casa de Lisboa, onde as indispensáveis regras de distanciamento são suavizadas pela profusão de luz, para onde quer que olhemos, e pelos sons clássicos da ópera que evoluem quase imperceptíveis, numa elegância que flutua contagiante…
O que vê o virologista ao olhar para este vírus?
Vejo um vírus que afecta fortemente um grupo de risco muito específico, mas que na maioria da população é atenuado. Pelo menos, 80% das pessoas infectadas nem sabe que está nessa situação. Depois, há uma percentagem de casos clínicos ligeiros. Uma pandemia surge porque há um micro-organismo novo para o qual a população mundial não tem resistência, não tem imunidade, ou seja, o vírus está muito bem adaptado e, por isso, livre para se disseminar – o que não deixa de ser uma vantagem relevante, pois, ao ter este comportamento, será relativamente pouco virulento. Vejamos: um vírus que mata como o Ébola, com uma taxa de letalidade de 80-90%, não está adaptado a disseminar-se rapidamente, desde logo porque uma pessoa doente fica prostrada, não anda a contagiar, a infectar outras pessoas com esta facilidade do coronavírus.
Voltando directamente à essência da questão, quando olhei para este vírus, verifiquei que o seu comportamento era muito semelhante ao dos outros coronavírus que conhecemos e que, na maioria dos casos, resultam em doença assintomática ou ligeira. E para simplificar, eu diria que a solução é construir uma imunidade de grupo, que pode ser conseguida de duas formas: por vacinação ou por infecção natural. A primeira acaba por ser uma imitação da segunda, mas feita de uma forma muito segura, porque é manipulada pelo homem. Convirá, talvez, explicar que muitas das nossas vacinas são vírus atenuados – a vacina da papeira, do sarampo, da rubéola… E quem diz atenuados diz que não provocam doença, pelo contrário, protegem a população. Quanto ao novo coronavírus, é claro que no seu estado pandémico é muito perigoso para os grupos de risco. Na leitura da pandemia actual, devemos considerar duas coisas que parecem contraditórias: por um lado, temos de deixar a infecção correr na população de uma forma muito controlada; por outro lado, temos de proteger os grupos de risco. E eu insisto neste ponto, frisando bem que o perigo, aqui, é se evoluirmos num processo descontrolado, que não seja capaz de proteger a população mais frágil e susceptível de não resistir perante o vírus. Donde, o mais recomendável será investir e concentrar a nossa estratégia numa gestão prudente face à evolução da pandemia, procurando sempre a adopção de medidas que resultem na menor perda de vidas humanas. E o caminho faz-se caminhando, vai-se construindo até aparecer uma vacina – que até pode não aparecer; esse é um cenário que temos sempre de equacionar. Mas se acontecer, será fantástico. Vamos ver…
Teremos tirado alguma lição das anteriores pandemias que nos possa estar agora a ser útil?
Com certeza. Virtualmente, todo o conhecimento que estamos a usar agora como solução cientificamente apontada é um saber que vem de longe. Os coronavírus foram descobertos há oitenta anos. Portanto, há todo um conhecimento acumulado que constitui importantes pontos de apoios para os cientistas que a nível global estão concentrados a arranjar soluções para este vírus. Nunca no mundo moderno, nunca na nossa geração a ciência esteve tão concentrada num problema, com a vantagem de não estarmos a começar do zero.
Os virologistas sabiam que uma pandemia era algo iminente?
Eu diria expectável. A questão não era ‘se’ mas ‘quando’ iria acontecer. Durante algum tempo, a OMS [Organização Mundial de Saúde] e o CDC [Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos] disseram que uma das grandes ameaças à segurança pública nos EUA e no mundo, globalmente considerado, seria uma pandemia viral. E nesse cenário as preocupações apontavam para a influenza – essa sim, a acontecer, será uma pandemia temível em comparação com esta que estamos a enfrentar. Não tem nada a ver. Para a ciência e para os virologistas, em especial, esta pandemia é também um ensaio que nos permitirá acrescentar conhecimento. O que faz o cidadão comum temer o pior, neste caso, é a velocidade de propagação do vírus e o desconhecimento ou o entendimento do que é um vírus. Tenhamos presente que os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios que precisam de hospedeiros para se replicarem e poderem sobreviver na Natureza. Os vírus saltam evolutivamente de espécie para espécie em saltos zoonóticos (que se transmitem de animais para humanos e vice-versa). Apesar de tudo, há uma barreira da espécie. Durante a nossa evolução, convivemos com animais domésticos e alguns animais selvagens, a que nos fomos adaptando e com os quais partilhamos alguns tipos de vírus.
Quando o ser humano descobriu a agricultura e começou a fazer cidades e a aglomerar-se, as áreas citadinas ficaram suficientemente grandes para que o vírus do sarampo saltasse do animal para o homem, vírus esse que infecta uma pessoa e causa imunidade para a vida inteira. Mas só consegue infectar hospedeiros num universo populacional de, pelo menos, 500 mil pessoas, em que o número de novos nascimentos é suficiente. Agora, a realidade é diferente porque estamos a colocar uma pressão muito grande na Natureza, aumentando o contacto com determinados animais e invadindo o seu habitat. Resulta daí que a probabilidade de precipitarmos este salto na barreira da espécie, ao contactarmos com animais que nunca contactávamos, é enorme. Vejamos o VIH. Este vírus surgiu na África subsaariana, o que provocou um salto na barreira da espécie. Do ponto de vista evolutivo, é interessante verificar que o vírus saltou do chimpanzé (em vias de extinção) para o homem, sendo de assinalar que a população mundial supera já os sete mil milhões de habitantes. Neste momento, também por acção humana os gorilas em África estão hoje fortemente pressionados pelo vírus Ébola, consequência de invasão do seu habitat pelos animais que transmitem este vírus.
Como avalia o impacto da magnitude desta pandemia, desde logo em Portugal, e o que destacaria da sua evolução até aqui, a nível global, que deve ser sublinhado?
Penso que temos gerido bem. Tivemos a felicidade – não podemos negar – do vírus chegar mais tarde do que a Itália e a Espanha. Mas depois, reagimos correctamente. Vimos o que aconteceu com os outros e tirámos daí as devidas notas; houve países que viram o que estava a acontecer e, mesmo assim, não fizeram o que Portugal fez. Portanto, tivemos esse mérito, actuámos; o isolamento social e a restrição dos movimentos, exemplarmente cumpridos pelos portugueses, foram determinantes para podermos controlar a evolução da pandemia. E depois, foi crucial desenvolver os testes e implementá-los de forma relativamente rápida. A ciência teve aqui um papel importante, o SNS [Serviço Nacional de Saúde] também soube corresponder, e conseguimos controlar a infecção da pandemia numa fase muito inicial. O facto de não termos tido um afluxo exagerado de infectados deu tempo ao SNS para se preparar. Assim o sistema esteja preparado se vier uma segunda vaga, que é provável que surja. A nível global, este é um problema… global.
Esta pandemia surge num tempo em que a informação (e a desinformação, bem entendido) circula a um ritmo imparável, muitas vezes confundindo – e não apenas o cidadão comum… Tem sido assim, por exemplo, relativamente à utilização da máscara, a respeito da transmissão do vírus, sobre os avanços da investigação apontada às terapêuticas ou na corrida à vacina (leia-se no plural, tantas são as que se perfilam diariamente). Sente que a comunidade científica é também ela pressionada, arrastada para o olho deste furacão mediático, errático, imprevisível, inescapável?
Eu percebo as polémicas que houve com a máscara. Essencialmente, a máscara não dá 100% de eficácia de protecção. É um equipamento que ajuda a mitigar. E por isso é importante usar, mas de forma correcta – caso contrário, dará sempre uma falsa segurança às pessoas. E isto é uma aprendizagem, na certeza, como já assinalei, de que o caminho faz-se caminhando. Eu percebo porque é que houve determinadas declarações que foram feitas e algumas hesitações e contradições, às vezes, até, partindo de uma base científica correcta. O importante é aprender com o que está a acontecer – e corrigir, ajustar, acertar. Falando aos portugueses que nos estão a ler, as minhas recomendações afinam, no essencial, pela mensagem do primeiro-ministro japonês, que assenta nos 3C: evitar Closed spaces [espaços fechados interiores], Crowded spaces [espaços lotados] e Close-contact setting [contactos demasiadamente próximos]. Tudo isto, claro está, usando a máscara facial e cumprindo as regras de higiene. É muito importante que o medo não nos paralise. Estamos numa fase em que temos, forçosamente, de ter respeito e receio – mas não medo. Até porque sabemos quais são os riscos. Eu já ando a estudar estes assuntos há quase trinta anos. Mas a generalidade das pessoas, cuja ansiedade é natural e legítima, exige respostas definitivas, e eu entendo isso. Uma jornalista perguntava-me, hoje mesmo, se o vírus é ou não transmitido pela água. E eu respondi: pode ser transmitido pela água, mas esse não é o principal meio de transmissão – nem a água do mar, nem a água da piscina… A resposta está na proximidade física das pessoas. O principal modo de transmissão é a inalação e o contacto nas mucosas (nariz, olhos, boca).
Confirma que têm sido detectadas mutações do vírus, e se alguma delas é potencialmente mais perigosa?
Este coronavírus acumula algumas mutações, como parte natural do seu ciclo de vida, mas que não são biologicamente importantes, não sendo expectável que o torne mais virulento. Os coronavírus são geneticamente muito estáveis – pelo menos, até agora têm sido. Vamos lá ver: a confusão surge porque na replicação de vírus com genoma de RNA há introdução de mutações e muitos vírus usam isso até como forma biológica vantajosa. O vírus da gripe usa essa capacidade de mutação em determinadas proteínas para persistir na população, conseguindo invadir a nossa resposta imunológica – e é por isso que nós temos de estar sempre a corrigir a vacina. Geralmente, o genoma dos vírus RNA têm entre cinco mil a dez mil nucleótidos [blocos construtores dos ácidos nucleicos: o DNA e o RNA] e este coronavírus tem 30 mil… Daí, por serem tão compridos, os coronavírus desenvolveram um mecanismo que corrige as suas mutações, tornando-os geneticamente mais estáveis.
Como interpreta a relação entre o crescimento do número de infectados e a sazonalidade?
A questão é pertinente e leva-me à definição de vírus endémico (quer dizer pertencente a uma região). Ora, os vírus endémicos respiratórios são tipicamente sazonais. E assim sucede porque se adaptaram às estações: as pessoas estão em espaços fechados, mais juntas e com mais contacto, precisamente no Inverno. A partir daí, há mais oportunidade de infecção no Inverno e menos no Verão – também é nesta estação que os raios ultravioleta (a que os vírus são muito sensíveis) têm maior significado. E aqui se estabelece uma sazonalidade que é lógica. Em contraponto, numa situação pandémica, como há uma população susceptível tão grande, já esse efeito da sazonalidade não é tão marcante, esbate-se mais.
O que nos diz, hoje por hoje, a evidência científica em relação aos verbos contagiar, testar, imunizar?
Vamos aos verbos. Contagiar: o vírus dissemina-se muito bem e com muita eficiência porque a maior parte das infecções são assintomáticas e invisíveis, o que torna as pessoas muito contagiantes. Testar: precisamente porque há infecções invisíveis, é importante identificá-las, e a única maneira de o fazer é testando. Imunizar: naturalmente ou artificialmente (através da vacina) é a única forma de parar a pandemia.
Está confirmada a origem do SARS-CoV-2? E o vírus transmite-se aos animais domésticos e de companhia?
Mesmo ainda sem evidência, é sabido que os morcegos albergam muitos tipos de vírus conhecidos por coronavírus. Não se sabe ainda se terá sido um vírus que foi directamente transmitido pelos morcegos ou se havia um hospedeiro intermediário – pode até ter sido o pangolim, mas até agora não há certezas. Que foi um animal – isso é inequívoco; os vírus não surgem por geração espontânea. Têm de vir de algum lado, de um suporte vivo, seja ele o morcego, o pangolim ou outro animal exótico. O que seria interessante é saber se foi uma coisa fortuita ou se veio de uma quinta onde são produzidos intensivamente estes animais selvagens. Relativamente à transmissão do vírus aos animais domésticos e de companhia, importa dizer que há muitos anos que evoluímos com eles. É possível que os humanos sejam potenciais transmissores deste coronavírus aos animais, estudos experimentais já o demonstraram.
Como avalia os índices de letalidade do novo coronavírus em Portugal e no Mundo?
Portugal tem um índice de cerca de 132 óbitos por milhão de habitantes. Há países cujo rácio atinge os 800 óbitos. Na comparação, é óbvio que o nosso desempenho reflecte o modo como temos sido capazes de controlar a pandemia. Como falávamos há pouco, devemos seguir por aqui, neste caminho de construção da imunidade de grupo com infecção natural, mas com muito cuidado para não deixarmos descontrolar. Nova Iorque foi apanhada de surpresa – o lado positivo num contexto muito complicado é que a imunidade populacional já está nos 20%. Agora, podemos olhar para Nova Iorque e tentar perceber, com aquele grau de imunidade, quais as medidas que têm de ser tomadas e que permitem, até, abrir a economia – com as devidas cautelas, é certo. Depois, há países com grandes problemas de estrutura social, e que estão a sofrer fortes impactos, como é o caso do Brasil. As culturas – e estou já a pensar na Suécia nesta equação – são todas diferentes e temos de respeitar a diversidade. É muito fácil apontar o dedo… Pergunto: a situação sueca é pior do que aconteceu em Espanha, no Reino Unido ou em Nova Iorque?... Somos todos diferentes e ninguém estava preparado. Em termos científicos, a opção da Suécia fazia todo o sentido ao apontar para algum controlo na disseminação do vírus, algum distanciamento social, protegendo os grupos de risco e construindo uma imunidade de grupo. Só que não correu tão bem como os suecos esperavam… Seja como for, ainda é cedo para tirar conclusões – no fim da pandemia, logo se verá. Dentro dos mesmos pressupostos, a opção tomada pelos ingleses era, de facto, mais arriscada, porque as cidades são muito maiores e incomparavelmente cosmopolitas – tudo a complicar. Mas na realidade, ninguém estava preparado. E a melhor maneira de nos prepararmos para as próximas pandemias é… evitá-las.
A segunda vaga da pandemia parece ser consensual, um dado adquirido – não sabemos é quando chegará… Quer comentar?
Como virologista, devo dizer que o potencial pandémico é agora maior do que nunca. A razão é muito simples: neste momento o vírus está disseminado e, na melhor das hipóteses, só temos cerca de 3% da população imunizada. O que significa que 97% da população portuguesa está susceptível. Então, se sabemos que existe um vírus pandémico em que uma grande parte da população ainda não está imunizada, ao promovermos o desconfinamento e a consequente abertura da sociedade, que é vital, aumentamos a probabilidade de uma segunda vaga. O que é importante é que a dimensão dessa segunda vaga seja controlada e os grupos de risco sejam protegidos. A minha interpretação daquilo que é o conhecimento dos vírus e a sua capacidade de disseminação leva-me a deixar o alerta: o regresso à normalidade sem prudência poderá ter custos muito altos.
No essencial, concorda com a forma como tem sido conduzida a gestão desta crise em Portugal? O que faria diferente?
Em retrospectiva, seria muito injusto dizer que teria feito algo diferente…
Bulgária, Israel e Nova Zelândia são, até aqui, três exemplos de gestão bem- -sucedida da pandemia. Que lhe parece?
Acho que acabaram por beneficiar do exemplo português. Em boa verdade, nem aqui, nem nesses países, houve um milagre. Sobre o nosso segredo, há dias em declarações à BBC apontei o timing – a pandemia chegou cá mais tarde do que a Itália e a Espanha –, o bom comportamento dos portugueses e o facto de acreditarmos na ciência. Vejamos: Portugal é um país com longa tradição de navegação, geografia, cartografia, matemática. Ou seja, somos um país de ciência. Que acredita e confiança na ciência. Acresce, naturalmente, a resposta do SNS e as nossas competências em toda a linha de intervenção face à pandemia.
Em relação à vacina, quais são objectivamente as suas expectativas?
Já foram muito baixas, agora são um pouco mais altas. Seja como for, eu diria que se houvesse agora uma terapêutica e uma vacina, seriam ambas relevantes, sendo certo que a vacina era obviamente a mais relevante das duas. Dito isto, mesmo que não houvesse vacina, a terapêutica já seria muito importante. Imaginando o melhor dos cenários (e para já, não há certeza absolutamente nenhuma) estima-se que, no mínimo, poderá demorar 12 a 18 meses. E como nós não podemos ficar em casa por tempo indeterminado, temos de optar por outra solução: a construção da imunidade da população, controladamente, com protecção máxima dos grupos de risco. Esse é o caminho – não há outro.